Reféns de nossas neuroses, nos entregamos a problemas quase sempre inventados

Adoro quando, do nada e sem nada esperar, levo uma bofetada na cara dada por alguém supostamente morto. Acontece sempre da mesma forma: estou desprotegida e inocente, quando surge um conjunto de letras que saltam das páginas e aplicam golpes milenares de artes marciais. Caio morta. Uma sacanagem, devo dizer. Essa é a definição de clássico, afinal: uma obra cujos tentáculos se estendem indefinidamente pelo espaço-tempo, sem perder sua mensagem original.

Gibran Khalil perfurou décadas do calendário e cravou sua adaga ao ser questionando sobre liberdade. Diz Al-Mustafa, O Profeta: “se é uma preocupação que quereis rejeitar, essa preocupação foi escolhida por vós mais do que a vós imposta”. Leio de novo. Ai! E continua: “E se é um déspota que quereis destronar, verificai primeiro se seu trono erigido dentro de vós está destruído. Pois, como pode um tirano dominar os livres e os altivos se não houver tirania na sua própria liberdade e vergonha na sua própria altivez?”

A pontada de culpa bate como um mamute por todos os déspotas a quem dei meus mais caros tronos. Quantas pontadas não nos agulham o peito por ofensas sabidamente falsas, mas que teimam a queimar os canais lacrimais? Quantas vezes não cede o homem, mirrado e fracote que é, espaço de sua vida para bandalheiros de meia tigela? Quantas vezes não se lhe entrega a sofrer por hipóteses? A sentir-se só por abandonar-se de si mesmo? A não se perdoar por erros banais ou preferir sofrer a agir para a correção de erros imensos?

Por outro lado, muitas são também as necessidades desnecessárias que de repente surgem como bombas-relógio: enriquecer, emagrecer, alcançar poder, agradar os outros, atingir a perfeição em algo… Há tanta neurose que criminosamente permitimos que se instale!

É fácil demais ceder o trono da alma a sanguessugas que, na maioria das vezes, poderiam simplesmente ser encarados como parte do caminho. Por mais simplista que seja o pensamento binário, por vezes poderia ser útil se a vida fosse uma sequência de constatações do tipo: “Estou ferrado. Posso fazer algo sobre isso?” Se sim, faço. Se não, não faço e me resigno a caminhar, sem permitir que a preocupação se instale como um câncer em metástase pungente. Não vai adiantar nada mesmo.

Somos os culpados de nossas preocupações. Somos os culpados de nossos capatazes. Somos os culpados de nossas culpas. Somos escravos de nós. Ah… os nós cegos que falsamente cuidamos para evitar, mas que os dedos já treinaram a fazer na oscilante linha da vida. Nós de marinheiro. Nós, que adoramos nós. Nós, escravos de nós inventados.

Se fôssemos livres de verdade, a liberdade não seria assunto tão recorrente em livros, e poesias, e crônicas, e discursos. Ninguém comenta o tempo inteiro aquilo que é inconteste, do contrário sairíamos por aí constatando maluquices como “tenho mãos, veja que interessante! Tenho mãos! Tenho um nome, sabia? Juro, tenho um nome!” A necessidade sintomática de se autodeclarar livre naturalmente decorre do fato de que sê-lo é coisa rara, quando não impossível. Se é uma meta, é porque ainda não se fez presente.

Reféns de nossas neuroses, nos entregamos a problemas quase sempre inventados. Resta-nos resistir à rendição.

……………………………………………………
*Fonte: revistabula / Lara Brenner

Era da informação, tempos de ignorância

Web: A difusão do conhecimento e sua dissolução em meio à ignorância

Nunca em toda a história o conhecimento esteve tão acessível a tão ampla parcela da população. Se por muito tempo o saber foi monopolizado por segmentos sociais dominantes, nos dias atuais qualquer um que disponha de um telefone móvel e, no mínimo, consiga acesso a uma rede Wi-Fi pode pesquisar acerca dos mais variados assuntos e conhecer – ainda que virtualmente – bens culturais de todo o mundo. De receitas culinárias, passando por manuais de sobrevivência, até foguetes caseiros, há um sem número de sites, tutoriais e vídeos tratando do assunto. No início da difusão da rede mundial de computadores esse fenômeno já fora previsto e apontado como algo que garantiria uma formação cultural mais autônoma e eficaz, a ponto de se cogitar inclusive a futura obsolescência de escolas e professores.

Não obstante, nessa mesma rede mundial de computadores, da qual um dos usos principais são outras redes – essas que se dizem “sociais” – é possível observar toda a superficialidade de ideias de grande número de usuários que reagem a, comentam e compartilham fragmentos de ideias, quase sempre descontextualizadas e utilitariamente. Ora, todos gostamos de compartilhar um meme ou frase de efeito engraçada, ou que cuja ideia principal nos agrade, ou ainda, apenas por acharmos oportuno socializar uma informação que não precisa estar teoricamente referenciada. O hábito pode ser inclusive salutar, lúdico e útil. Quantas pessoas perdidas ou distantes são encontradas através das redes sociais. Outras tantas conseguem iniciar ou ampliar seus negócios valendo-se desse mesmo recurso. Grupos de debate sobre os mais variados assuntos se multiplicam e, por vezes, ajudam até a sensibilizar para a fragilidade de convicções arraigadas, mal fundamentadas e preconceituosas. Sendo assim, não se mostra coerente criticar genericamente algo que pode oferecer tantos benefícios.

Onde estaria então o lado negativo da rede mundial de computadores e de suas redes “sociais” para a construção do conhecimento, oferecendo elas acesso a tão ampla gama de informações a um grandioso número de usuários que ainda está a crescer? A meu ver, a tentativa de responder a esse questionamento exige outra pergunta mais pessoal e nada retórica: “até que ponto redes sociais e sites com informações simplistas e sintetizadas têm se tornado minha principal fonte de informação e, grosso modo, de conhecimento, na medida em que embasam minhas exposições e argumentos (consequentemente, meu raciocínio)?”

Não deve ser difícil se pegar na “saia justa” com essa pergunta. Uma simples pesquisa no Google revela um grande número de pessoas que dizem ter se tornado incapazes de ler livros ou textos mais longos (honestamente, desconfio que muitos que começarem a ler esse texto nem chegarão até aqui). A maioria dessas pessoas e das que comentam esses “desabafos” reconhecem no uso intensivo de textos sintéticos e superficiais disponibilizados na internet a causa para essa situação. A leitura curta e simplória acaba por se tornar hábito. Vemos então que o problema não está na ferramenta, mas em um certo tipo de comodismo intelectual de quem a utiliza, tendo em vista que essa mesma internet oferece acesso a leituras clássicas de domínio público em diversas áreas.

Compreender a forma como a dinâmica de disseminação e simplificação da informação na internet pode condicionar a maneira como nos relacionamos com o conhecimento é fundamental para que dominemos de fato as Tecnologias da Informação e Comunicação. Esse domínio da tecnologia não diz respeito apenas ao uso eficaz dessas ferramentas, mas à capacidade de discernir o limite onde deixamos que as facilidades e frivolidades oferecidas pela máquina moldem nossa maneira de construir nosso próprio conhecimento e raciocínio.

Bauman e a “cultura da oferta”: o conhecimento como mercadoria virtual

Para Zygmunt Bauman, o comodismo intelectual que parece permear a superficialidade de certas postagens revela um aspecto que não é algo idiossincrático, mas ideológica e amplamente disseminado. Em seu livro “Capitalismo parasitário”, Bauman demonstra que esse fenômeno faz parte de um processo pós-moderno que ele chama de “cultura da oferta”, processo esse que tende a impregnar todos os aspectos sociais com os valores mercadológicos. Assim, não só o próprio trabalhador, mas também o lazer, as relações sociais, bem como a cultura e o próprio conhecimento acabam por assumir aspecto de mercadoria, passando a se estabelecerem sob as mesmas regras que regem o mercado. Trazendo esse conceito para nossa discussão, poder-se-ia dizer que o tal comodismo intelectual anteriormente citado passa pela internalização de valores mercadológicos como o utilitarismo, o imediatismo, a descartabilidade, o modismo. Uma ressalva se faz necessária: não sejamos tão teoréticos a ponto de não considerar também fatores mais comuns, como os culturais, sociais e – por que não dizer – a própria preguiça individual. Mas, de maneira geral, o conceito baumiano de “cultura da oferta” nos serve bem.

Nesse contexto, sem entrar nos detalhes que Bauman desenreda primorosamente em seu livro, podemos dizer que até o conhecimento tem se tornado algo a ser consumido segundo a oferta do mercado. Estuda-se para tirar uma boa nota, passar no vestibular, porque determinado assunto está na moda, ou simplesmente porque “dá dinheiro”. Dessa maneira, a internet torna-se uma conveniente depositária da cultura e do conhecimento, sempre disponível a prestar seus serviços de memória externa do intelecto humano. Dentro dessa lógica, basta que se acesse o conteúdo mínimo necessário para que se possa alcançar os objetivos sempre imediatistas e provisórios do mercado. Sínteses de livros, sites com conteúdos simplificados e até aqueles que se prestam a fazer seu trabalho de faculdade são exemplos de usos pouco edificantes da internet. A mesma fonte que oferece o acesso aos bens culturais mais elaborados também possui características dispersivas e acomodatícias.

Ora, também é comum querermos, às vezes, ter apenas uma noção de determinado assunto, sem a necessidade de nos aprofundarmos nas premissas que o sustentam. Dessa forma, para reconhecer os limites do uso saudável dos “atalhos” que a internet oferece é importante compreender a maneira como o pensamento mais elaborado é construído e comparar esse processo com a maneira simplista e fragmentada de disseminação de informações no mundo virtual.

Construtivismo: pensamento integrador X conhecimento fragmentado

Jean Piaget é um dos principais pensadores que embasam a teoria educacional conhecida como educação construtivista. Como o próprio nome denota, entende-se que o indivíduo precisa construir seu próprio conhecimento a partir de sua relação com o objeto de estudo. Piaget diz que tal relação pode sim ser mediada e socializada, mas que para construir verdadeiramente seu próprio conhecimento, o indivíduo precisa descobrir por si mesmo as causas, fatores e relações dos fenômenos estudados.

Nesse contexto, o conhecimento não é algo a ser absorvido, mas internamente elaborado. Através do confronto de seus conhecimentos prévios com novas evidências, da análise das mesmas, de suas relações com outros conhecimentos e suas implicações na vida cotidiana, o sujeito acaba por reorganizar suas estruturas cognitivas. Isso implica não apenas na assimilação de novos conceitos, mas na mudança qualitativa na capacidade de raciocínio e senso crítico. Inversamente, nada que é entregue como verdade, nada que seja apresentado como fato acabado, nada que não seja descoberto pelo próprio indivíduo, nada disso pode propiciar a reorganização de estruturas cognitivas e a consequente mudança na capacidade de pensamento.

Ora, se tomarmos como plausível a ideia piagetiana de construção do conhecimento, podemos inferir que a forma como a maior parte das informações é disseminada na internet não oportuniza o desenvolvimento de um pensamento mais elaborado e crítico. Na verdade, grande parte de conteúdos que “viralizam” são o contrário disso; apresentados de forma simplista, descontextualizada, sem proporcionar o mínimo de reflexão e articulação com outros conhecimentos e a vida cotidiana. Isso sem falar das manipulações de que se valem deterministas que desejam propagandear ou condenar infundadamente determinada ideia, o que exige atenção até mesmo quando se quer apenas obter uma noção sobre algum assunto.

Não há atalhos!

Não há dúvidas! Dentre outros benefícios, a difusão da rede mundial de computadores permitiu o acesso de grande parte da população a variados bens culturais como nunca antes na história.

O problema é que paralelamente tornaram-se comuns formas simplistas de difusão desse conhecimento, que passa a não propiciar o desenvolvimento do pensamento mais elaborado e do senso crítico. Em muitos casos, o que ocorre é a disseminação de formas de pensamento superficiais e fragmentadas.

Assim, o conhecimento toma – como tem se tornado comum aos diversos aspectos da vida atual – caráter mercadológico. Estuda-se quando o sistema exige, o mínimo em quantidade e o mais compartimentalizadamente possível. Até mesmo quando se quer apenas ter uma noção sobre determinado assunto é preciso atentar para a qualidade da informação acessada.

A verdade é que não há atalhos para aquele que deseja assimilar conhecimentos relevantes, ampliar sua capacidade de pensamento e desenvolver seu senso crítico.

Os benefícios que a universalização da vida virtual nos trouxe são inegáveis. Todavia, sua dinâmica de disseminação simplista e fragmentada de informação parece constituir uma realidade insubmissa. Isso sem falar de seus aspectos frívolos e dispersivos. É preciso conscientizar-se de que esse lado pouco edificante da Web é sutil e vicioso e pode condicionar sim nossa forma de pensar e de aprender.

Material de qualidade também há na internet. Quase todos os clássicos de diversas áreas do conhecimento podem ser encontrados de forma legal na rede. Sites especializados divulgam estatísticas mais confiáveis. Professores renomados e provocadores divulgam vídeos instigantes em suas redes sociais. É no contato com esses materiais, contextualizando-os, criticando-os, que conhecimentos sólidos são construídos e se desenvolve a qualidade do pensamento.

*Renato Paixão

…………………………………………………………………
Fonte: genialmentelouco