“O Mundo Da Gente Morre Antes Da Gente” – Por Eliane Brum

O drama de quem alcançou a promessa de uma vida longa é a solidão de estar vivo numa vida que já morreu. Se fizéssemos um retrato agora, de todos os vivos, teríamos também um obituário: daqui a 100 anos estaremos todos mortos. Olhamos pela janela e todos os que vimos em seu esforço cotidiano, carregando-se para o ponto de ônibus, sintonizando a rádio preferida ao sentar-se no carro, puxando assunto na padaria ou desferindo seu ódio e seu medo em pequenas brutalidades serão finados (palavra de tanto simbolismo), em menor ou maior prazo.

Assim como finado será aquele que espia a única paisagem que não muda numa vida humana, a de que, para o indivíduo, o futuro está morto.

A verdade, que talvez nem todos percebam, é que se morre aos poucos. Não apenas pela frase clássica de que começamos a morrer ao nascer. De que cada dia seguinte arrasta o cadáver do dia anterior. De que cada amanhã é um dia a mais – mas porque é um dia a menos. Ao entrevistar os que envelheceram, descubro-os surpreendidos pelo drama menos nítido, aquele se infiltra lentamente nos interstícios dos dias: o de que o mundo da gente morre antes da gente.

[…]Pensava que essa era uma condição restrita à velhice. A surpresa final de que o melhor cenário, o de viver mais, era também o de perder mais. Mas descobri que esse morrer começa muito antes. E de forma ainda mais insidiosa. O mundo da gente, em especial das gentes com mais de 40 anos, porque é nessa altura que sentimos que já temos um passado e o futuro é uma segunda metade incerta, tem morrido muito. E rápido, às vezes um sobressalto por dia, às vezes dois.

[…]Qual é a diferença de Gabriel García Márquez estar vivo ou morto, se a chance de eu tomar um café com ele era remota e sempre vou ter meu O amor nos tempos do cólera na estante, para que ele possa reviver em mim? O que percebo é que há uma diferença. Há algo de melancólico, desestabilizador, em testemunhar o momento exato em que um imortal morre.

[…] Talvez o imortal fique mortal demais nessa hora, fique parecido demais com todos os outros. Como disse Woody Allen: “Não quero atingir a imortalidade através de minha obra. Quero atingi-la não morrendo”. E desde então temo me confrontar com seu obituário numa manchete na internet.

De certo modo, é assim que o mundo da gente começa a morrer antes da gente. Não apenas pela perda dos nossos afetos de perto, mas também pelo filme que Philip Seymour Hoffman não fará ou pelo livro que Ariano Suassuna não escreverá enquanto dividimos com ele o mesmo tempo histórico.

[…] A primeira vez que senti a infiltração de algo irreversível no meu mundo foi a morte de Marlon Brando, mais de doze anos atrás. A morte ainda não me bafejava como hoje, mas passei alguns dias prostrada por alguém que para mim já tinha nascido imortal. Percebi então que fazia diferença lembrar dele berrando “Steeeeeeeela” em Um bonde chamado desejo e, ao mesmo tempo, poder mencionar qualquer coisa boba como: “Nossa, como ele está gordo agora”. De repente, ele não podia mais engordar nem nos espantar com sua existência descuidada. Só restaria grandioso. E, portanto, fora da vida. (Da nossa vida.)

Marlon Brando, como García Márquez, como Ariano Suassuna, como tantos agora, não se sabiam meus, mas eram. Ao me deixarem, morro um pouco. Uma versão de nós morre sempre que morre alguém que amamos e que nos ama, porque essa pessoa leva com ela o seu olhar sobre nós, que é único. Uma parte de nós também morre quando não podemos mais compartilhar a mesma época com quem fez do nosso mundo o que ele é. E agora, fico esperando a cada momento uma nova notícia, porque sei que elas não mais deixarão de chegar. […]

Nossas escolhas nunca são consumadas em condições ideais nem nosso arbítrio é totalmente livre. Só conseguimos fazer escolhas determinadas pelas circunstâncias do que vivemos e do que somos naquele momento.

[…] Não há lugar para a morte. Como haveria lugar para a morte? Mas é preciso dar um lugar à morte para que a vida possa continuar. É para isso que criamos nossos cemitérios dentro ou fora de nós. Em geral, mais dentro do que fora. A vida é também carregar os mortos no último lugar em que podem viver, em nossas memórias. E aos poucos nos tornamos um cemitério cada vez mais habitado por aqueles que só vivem em nós.

[…]É essa a morte silenciosa que vai se alastrando pelos dias. Conto meus imortais ainda vivos, os de longe e os de perto. Digo seus nomes, como se os invocando. Peço que não se apressem, que não me deixem só, que não me deixem sem saber de mim. O acaso, a vida que muda num instante, me assusta tanto quanto esse meu mundo que morre devagar. É essa a brisa quase imperceptível que adivinho soprando nos meus ossos. Muitas vezes finjo que não a escuto. Mas ela continua ali, intermitente, sussurrando para eu não esquecer de viver.

*Trecho de um texto de Eliane Brum extraído do jornal El País.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes – o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos e do romance Uma Duas. Site: elianebrum.com

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*Fonte: portalraizes

Os humanos estão evoluindo mais rápido do que nunca. O motivo não é genético, afirma o estudo

À mercê da seleção natural desde o início da vida, nossos ancestrais se adaptaram, se acasalaram e morreram, transmitindo minúsculas mutações genéticas que acabaram por tornar os humanos o que somos hoje.

Mas a evolução não está mais ligada estritamente aos genes, sugere um novo estudo. Em vez disso, a cultura humana pode estar conduzindo a evolução mais rápido do que as mutações genéticas podem funcionar.

Nessa concepção, a evolução não requer mais mutações genéticas que conferem uma vantagem de sobrevivência, sendo transmitidas e disseminadas. Em vez disso, os comportamentos aprendidos transmitidos pela cultura são as “mutações” que fornecem vantagens de sobrevivência.

Essa chamada evolução cultural pode agora moldar o destino da humanidade de forma mais forte do que a seleção natural, argumentam os pesquisadores.

“Quando um vírus ataca uma espécie, ele normalmente se torna imune a esse vírus por meio da evolução genética”, disse ao Live Science o co-autor do estudo Zach Wood, pesquisador de pós-doutorado na Escola de Biologia e Ecologia da Universidade do Maine.

Essa evolução funciona lentamente, pois aqueles que são mais suscetíveis morrem e apenas aqueles que sobrevivem passam seus genes.

Mas hoje em dia, a maioria dos humanos não precisa se adaptar geneticamente a essas ameaças. Em vez disso, nos adaptamos desenvolvendo vacinas e outras intervenções médicas, que não são o resultado do trabalho de uma pessoa, mas sim de muitas pessoas construindo sobre as “mutações” acumuladas do conhecimento cultural.

Ao desenvolver vacinas, a cultura humana melhora seu ” sistema imunológico ” coletivo , disse o co-autor do estudo Tim Waring, professor associado de modelagem de sistemas sócio-ecológicos da Universidade do Maine.

E às vezes, a evolução cultural pode levar à evolução genética. “O exemplo clássico é a tolerância à lactose”, disse Waring ao Live Science. “Beber leite de vaca começou como um traço cultural que impulsionou a evolução [genética] de um grupo de humanos.”

Nesse caso, a mudança cultural precedeu a mudança genética, não o contrário.

O conceito de evolução cultural começou com o próprio pai da evolução , disse Waring. Charles Darwin compreendeu que os comportamentos podem evoluir e ser transmitidos aos filhos da mesma forma que os traços físicos, mas os cientistas de sua época acreditavam que as mudanças nos comportamentos eram herdadas. Por exemplo, se uma mãe tinha uma característica que a inclinava a ensinar uma filha a procurar comida, ela passaria essa característica herdada para sua filha. Por sua vez, sua filha teria maior probabilidade de sobreviver e, como resultado, essa característica se tornaria mais comum na população.

Waring e Wood argumentam em seu novo estudo, publicado em 2 de junho na revista Proceedings of the Royal Society B , que em algum ponto da história humana, a cultura começou a arrancar o controle evolucionário de nosso DNA . E agora, dizem eles, a mudança cultural está nos permitindo evoluir de uma forma que a mudança biológica por si só não poderia.

Eis o porquê: a cultura é orientada para o grupo e as pessoas nesses grupos conversam, aprendem e imitam umas às outras. Esses comportamentos de grupo permitem que as pessoas transmitam as adaptações que aprenderam através da cultura mais rápido do que os genes podem transmitir benefícios de sobrevivência semelhantes.

Um indivíduo pode aprender habilidades e informações com um número quase ilimitado de pessoas em um pequeno período de tempo e, por sua vez, espalhar essas informações para muitas outras pessoas. E quanto mais pessoas disponíveis para aprender, melhor. Grandes grupos resolvem problemas mais rápido do que grupos menores, e a competição entre grupos estimula adaptações que podem ajudar esses grupos a sobreviver.

À medida que as ideias se espalham, as culturas desenvolvem novos traços.

Em contraste, uma pessoa só herda a informação genética de dois pais e causa relativamente poucas mutações aleatórias em seus óvulos ou espermatozoides, o que leva cerca de 20 anos para ser transmitido a seu pequeno punhado de filhos. É apenas um ritmo de mudança muito mais lento.

“Esta teoria já existe há muito tempo”, disse Paul Smaldino, professor associado de ciências cognitivas e da informação na Universidade da Califórnia em Merced, que não era afiliado a este estudo. “As pessoas vêm trabalhando há muito tempo para descrever como a biologia evolutiva interage com a cultura.”

É possível, sugerem os pesquisadores, que o surgimento da cultura humana represente um marco evolutivo fundamental.

“O grande argumento deles é que a cultura é o próximo estado de transição evolutiva”, disse Smaldino ao Live Science.

Ao longo da história da vida, os principais estados de transição tiveram enormes efeitos no ritmo e na direção da evolução. A evolução das células com DNA foi um grande estado de transição e, então, quando células maiores com organelas e estruturas internas complexas chegaram, o jogo mudou novamente. A fusão das células em plantas e animais foi outra grande mudança radical, assim como a evolução do sexo, a transição para a vida na terra e assim por diante.

Cada um desses eventos mudou a forma como a evolução agia, e agora os humanos podem estar no meio de outra transformação evolutiva. Podemos ainda evoluir geneticamente, mas isso pode não controlar muito a sobrevivência humana.

“No longo prazo, sugerimos que os humanos estão evoluindo de organismos genéticos individuais para grupos culturais que funcionam como superorganismos, semelhantes a colônias de formigas e colmeias”, disse Waring em um comunicado.

Mas a genética impulsiona as colônias de abelhas, enquanto o superorganismo humano existirá em uma categoria própria. Não está claro como será esse superorganismo em um futuro distante, mas provavelmente será preciso muita gente para descobri-lo.

*Por ScienceAlert

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*Fonte: pensarcontemporaneo