O que é a leitura profunda e por que ela faz bem para o cérebro

A pesquisa da neurocientista Maryanne Wolf aponta que “não há nada menos natural do que ler” para os seres humanos — mas isso não é de forma alguma ruim.

“A alfabetização é uma das maiores invenções da espécie humana”, diz a especialista americana. Além de útil, é tão poderosa que transforma nossas mentes: “Ler literalmente muda o cérebro”, diz ela.

O avanço da tecnologia e a proliferação das mídias digitais, contudo, têm modificado profundamente a forma como lemos.

Apesar de estarmos lendo mais palavras do que nunca — uma média estimada de cerca de 100 mil por dia —, a maioria vem em pequenas pílulas nas telas de celulares e computadores, e muita coisa é lida “por alto”.

Essas mudanças de hábito têm preocupado cientistas, entre outros motivos, porque a transformação de novas informações em conhecimento consolidado nos circuitos cerebrais requer múltiplas conexões com habilidades de raciocínio abstrato que muitas vezes faltam na leitura “digital”.

Um universo de símbolos
Ao contrário da linguagem oral, da visão ou da cognição, não existe uma programação genética nos humanos para aprender a ler.

Se uma criança, em qualquer parte do mundo, estiver em um ambiente em que as pessoas a seu redor conversam umas com as outras, sua linguagem será naturalmente ativada. O mesmo não acontece com a leitura, que implica a aquisição de um código simbólico completo, visual e verbal.

É uma invenção relativamente recente — “é uma piscadela em nosso relógio evolutivo: mal tem 6 mil anos”, diz Wolf.

“Começou de forma simples, para marcar quantas taças de vinho ou ovelhas tínhamos. E, com o nascimento dos sistemas alfabéticos, passamos a ter um meio eficiente de armazenar e compartilhar conhecimento.”

“Ler é um conjunto adquirido de habilidades que literalmente muda o cérebro”, ressalta a neurocientista.

“Permite fazer novas conexões entre regiões visuais, regiões da linguagem, regiões de pensamento e emoção”, completa.

Essa transformação “começa com cada novo leitor”. “(A habilidade de ler) Não existe dentro de nossa cabeça. Cada pessoa que aprende a ler tem que criar um novo circuito em seu cérebro.”

E isso abre portas para um novo mundo.

Saúde mental

“A leitura traz três poderes mágicos: criatividade, inteligência e empatia”, pontua Cressida Cowell, escritora de literatura infantil e autora da série Como Treinar Seu Dragão.

“Ler por prazer é um dos fatores-chave para o sucesso financeiro de uma criança na vida adulta. É mais provável que ela não acabe na prisão, que vote, que tenha casa própria…”

Além disso, “ler uma grande história é muito mais do que entretenimento”, acrescenta a biblioterapeuta Ella Berthoud.

“A leitura, na verdade, tem muitos benefícios terapêuticos. Seu cérebro entra em um estado meditativo, um processo físico que retarda o batimento cardíaco, acalma e reduz a ansiedade”, diz Berthoud.

Para ela, por exemplo, ler o romance Zorba, o Grego, de Níkos Kazantzákis, funciona como um remédio conta “claustrofobia, raiva e exaustão”.

A arte de prescrever ficção para curar as doenças da vida, batizada de biblioterapia, foi reconhecida no Publisher’s Illustrated Medical Dictionary, um dicionário médico ilustrado publicado nos Estados Unidos em 1941.

A prática remonta à Grécia Antiga, quando avisos eram afixados nas portas das bibliotecas para alertar os leitores de que estavam prestes a entrar em um local de cura da alma.

No século 19, psiquiatras e enfermeiras prescreveram todos os tipos de livros para seus pacientes, desde a Bíblia até literatura de viagem e textos em línguas antigas.

Vários estudos mais recentes, dos séculos 20 e 21, mostraram que a leitura aguça o pensamento analítico, o que nos permite aprimorar nossa capacidade de discernir padrões, uma ferramenta muito útil diante de comportamentos desconcertantes dos outros e de nós mesmos.

A ficção, em particular, pode transformar os leitores em pessoas mais socialmente habilidosas e empáticas. Os romances, por sua vez, podem informar e motivar, os contos confortam e ajudam a refletir, enquanto a leitura de poesia já demonstrou estimular partes do cérebro relacionadas à memória.

Muitos desses benefícios, no entanto, dependem de um estado conhecido como “leitura profunda”.

Pensamento analítico
“Quando lemos em um nível superficial, estamos apenas obtendo a informação. Quando lemos profundamente, estamos usando muito mais do nosso córtex cerebral”, explica Maryanne Wolf.

“Leitura profunda significa que fazemos analogias e inferências, o que nos permite sermos humanos verdadeiramente críticos, analíticos e empáticos.”

Em seu livro Proust and the Squid: The Story and Science of the Reading Brain (“Proust e a Lula: a História e a Ciência por Trás do Cérebro que Lê”, em tradução livre), a especialista em neurobiologia da leitura explica como, “a certa altura, quando uma criança vai da decodificação à leitura fluente, o caminho dos sinais através do cérebro muda”.

“Em vez de percorrer um trajeto dorsal (…), a leitura passa a se deslocar por um caminho ventral, mais rápido e eficiente. Como o tempo depreendido e o gasto de energia cerebral são menores, um leitor fluente será capaz de integrar mais seus sentimentos e pensamentos à sua própria experiência”, escreve.

“O segredo da leitura está no tempo que ela libera para que o cérebro possa ter pensamentos mais profundos do que antes.”

Mas, enquanto o processo de aprender a ler muda nosso cérebro, o mesmo acontece com o que lemos e como lemos.

Tempos modernos
Há aqueles, contudo, que acreditam que as novas plataformas são parte da solução, e não do problema.

Para Chris Meade, autor que utiliza vários tipos de mídia para veicular seu trabalho, “pensamos no livro como a obra, mas o livro é apenas um mecanismo de entrega”.

A narrativa transmídia é um tipo de história em que o enredo se desenrola por meio de múltiplas plataformas — aplicativos, livros digitais, games, quadrinhos, blogs — e na qual os consumidores podem assumir um papel ativo no processo de construção.

“As novas mídias estão dando voz a uma nova geração de escritores. Elas impedem que nos condicionemos a pensar que existe apenas um tipo de ‘boa escrita’ e permitem que as pessoas simplesmente compartilhem histórias e experiências”, opina Natalie A. Carter, cofundadora do clube do livro Black Girls Book Club.

“Não importa o meio, é a história que importa”, emenda Melissa Cummings-Quarry, também cofundadora do Black Girls Book Club.

“O romance está evoluindo. Há todo tipo de livro incrível sendo escrito especificamente para ser lido no celular”, afirma Berthoud.

“O livro talvez passe a ilusão de que ele é tudo. Nunca foi, é uma forma de entrar em um processo de pensamento”, diz Meade.

Ainda assim, os cientistas afirmam que a leitura digital pode ter um custo para o cérebro do leitor.

Fragmentação
“Reunimos acadêmicos e cientistas de mais de 30 países para pesquisar o impacto das mídias digitais na leitura”, afirma Anne Mangen, à frente da E-READ (Evolução da Leitura na Era da Digitalização), organização cujo objetivo é melhorar a compreensão científica das implicações da digitalização da cultura.

Faz parte do programa internacional da Cooperação Europeia em Ciência e Tecnologia (ou COST, sigla para European Cooperation in Science and Technology), que considera a leitura um “tema urgente”.

Segundo o programa, “a pesquisa mostra que a quantidade de tempo gasto na leitura de textos longos está diminuindo e, devido à digitalização, a leitura está se tornando mais intermitente e fragmentada”, algo que poderia “ter um impacto negativo nos aspectos cognitivos emocionais da leitura”.

“Descobrimos que existe o que se chama de inferioridade na tela”, destaca Anne Mangen.

“Há muitas coisas que podem ser lidas igualmente bem no smartphone, como as notícias mais curtas, mas, quando se trata de algo que é cognitiva ou emocionalmente desafiador, ler em uma tela leva a uma compreensão de leitura pior do que ler no papel”, diz ela.

Maryanne Wolf concorda, dizendo que “a realidade é que não é apenas o que ou o quanto lemos, mas como lemos que é realmente importante”.

“O próprio volume [de informação disponível nas plataformas digitais] está tendo efeitos negativos porque, para absorver tanto, há uma propensão a se ler ‘por alto’. O cérebro leitor tem um circuito plástico, que refletirá as características do meio em que se lê. As características do digital caminham para que sejam refletidas no circuito.”

Em outras palavras, assim como ao aprender a ler da maneira tradicional o cérebro formata e registra os itinerários da razão e os caminhos para a emoção, ao aprender a ler da maneira como fazemos nas mídias digitais o cérebro traçará diferentes trajetórias e, se deixarmos a leitura profunda de lado, ele apagará as anteriores, caso tenham um dia existido.

“Se não treinarmos essas habilidades, podemos acabar perdendo a capacidade de entender conteúdos mais complexos e, talvez, de nos envolvermos e usarmos a imaginação”, destaca Mangen.

Então, o que o futuro reserva para os livros e para o cérebro da leitura?

“A imaginação humana é uma coisa fantástica, somos muito flexíveis. Encontramos maneiras de fazer o que queremos com a tecnologia disponível”, pontua Chris Meade.

Para Natalie Carter, o futuro trará “muito mais coleções de contos, e acho que veremos muito mais livros curtos”.

Nesse sentido, Cressida Cowell diz já ter sentido a mudança: “Mudei a maneira como escrevo, porque o tempo de atenção das crianças diminuiu. Os livros têm capítulos curtos e são incrivelmente visuais, brilhantes, como doces”.

Para a neurocientista Maryanne Wolf, “assim como as pessoas podem ser bilíngues e trilíngues, minha esperança é que desenvolvamos um cérebro ‘biletrado’. Podemos nos disciplinar para escolher o meio que melhor se adapta ao que estamos lendo e, assim, não perder o dom extraordinário que a leitura deu à nossa espécie”.

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*Fonte: bbc-brasil

O livre arbítrio é uma ilusão?

Por centenas de anos, filósofos antigos e cientistas contemporâneos apontaram para a possibilidade intrigante de que o livre arbítrio é uma ilusão. Embora geralmente a maioria dos humanos acredite ter um controle relativo sobre suas decisões, pesquisadores como Benjamin Libet contestaram essa noção.

A ideia de que os humanos podem não ter autonomia completa sobre suas vidas questiona até que ponto temos controle. Se o livre arbítrio é uma ilusão e nosso controle é realmente limitado, então coisas como lei criminal e status social podem ser questionadas.

Mas essas conclusões são bem fundamentadas? Para avançar nossa compreensão coletiva do livre arbítrio , o Dr. Uri Maoz está liderando um projeto de pesquisa colaborativa que reúne neurocientistas e filósofos de todo o mundo.

Uma exploração do livre arbítrio
O que é livre arbítrio, realmente? A definição de livre arbítrio é: “o poder ou capacidade de escolher entre alternativas ou de agir em certas situações independentemente de restrições naturais, sociais ou divinas”. Em outras palavras, ter livre arbítrio é ter controle indefinido sobre si mesmo e suas decisões. O livre arbítrio nos permite escolher entre o certo e o errado, bem como uma miríade de escolhas mundanas todos os dias: ônibus ou bicicleta, sopa ou salada, etc.

O conceito de livre arbítrio vem com a assunção da responsabilidade pelas próprias decisões, boas e más. Essa suposição está em alinhamento estrito com o idealismo, a política e a estrutura social da América: os americanos têm controle sobre suas escolhas e, portanto, têm controle sobre seus resultados.

Para aqueles que acreditam que o livre-arbítrio é uma ilusão, coisas como lei criminal, provisão de bem-estar e status social podem estar fora de nosso controle. Sua postura levanta a questão: se não temos controle absoluto, podemos ser julgados absolutamente por nossas circunstâncias?

Maoz, neurocientista computacional da Chapman University, explica: “O livre arbítrio está na base de muitos dos nossos pilares sociais. Nosso sistema jurídico presume algum tipo de liberdade. Existem teorias econômicas que pressupõem que as pessoas são livres para tomar suas decisões. Por todas essas coisas, entender como somos livres, os limites de nossa liberdade, como é fácil manipular nossa liberdade, e assim por diante, eu acho que é importante. ”

A pesquisa de Maoz desafia as suposições controversas sobre o livre arbítrio que surgiram de nomes como Libet e Sam Harris , um conhecido autor e apresentador de podcast que declarou: “O livre arbítrio é uma ilusão. Nossas vontades simplesmente não são de nossa própria criação. ” A base para a ousada conclusão de Harris depende fortemente de experimentos conduzidos na década de 1980.

Nesses experimentos, os participantes foram solicitados a realizar tarefas simples, como pressionar um botão ou flexionar o pulso . Enquanto estavam sentados em frente a um cronômetro, com eletrodos de EEG monitorando a atividade cerebral presos às suas cabeças, os participantes foram instruídos a anotar o momento em que tomaram consciência de sua decisão de se mover.

O que os pesquisadores descobriram foi que os sinais de EEG foram identificados em média meio segundo antes que os participantes notassem sua consciência de sua decisão de se mover. Essa lacuna entre o sinal do cérebro e a consciência humana tornou-se conhecida como “potencial de prontidão”. Os pesquisadores acreditam que isso ajudou a provar que as decisões são tomadas primeiro no cérebro, antes que uma pessoa tome conhecimento de sua decisão.

Temos livre arbítrio?
Ao longo dos anos, várias falhas importantes foram identificadas nesses experimentos, o que gerou um debate no mundo da ciência. O trabalho de Maoz também questiona suas conclusões instáveis. Tendo empreendido uma série de experimentos para quantificar e testar o livre arbítrio, Maoz é um dos maiores líderes de pensamento em volição e tomada de decisão de nosso tempo.

“Eu não diria que há evidências convincentes agora de que não temos livre arbítrio”, disse Maoz, “na verdade temos evidências de que há muitos problemas com este experimento Libet … Mesmo se você realmente pudesse prever estes decisões muito arbitrárias de qual mão você levanta, não parece generalizar para decisões importantes da vida. ”

Aqueles que discordam das descobertas do experimento geralmente o fazem por alguns motivos. Os experimentos realizados por Libet, que ele alegou indicarem falta de livre arbítrio, podem não ter provado muito. As próprias premissas nas quais ele conduziu esses experimentos parecem estar equivocadas.

Libet acreditava que o atraso entre os sinais de EEG e a consciência dos participantes de sua decisão de se mover, ou o “potencial de prontidão”, mostrava que as decisões estavam sendo tomadas antes que a pessoa soubesse o que faria. As descobertas, no entanto, podem apontar para algo muito mais simples e menos científico.

Uma questão em torno da legitimidade do experimento é que uma certa quantidade de erro humano parece ser inerente a seus parâmetros. Afinal, os participantes foram solicitados a anotar o momento preciso em que tomaram conhecimento de sua decisão de realizar uma tarefa. É discutível que os humanos sejam capazes de registrar isso com precisão avançada.

Além disso, é questionável se Libet poderia ter provado com alguma certeza que os sinais de EEG lidos nos participantes estavam de fato ligados à sua decisão de movimento ou ao movimento em si. Ele poderia facilmente ter captado outros estímulos, como uma expectativa de movimento. As ferramentas usadas neste experimento poderiam realmente ler o momento exato em que os participantes tomaram a decisão de realizar uma tarefa com alguma precisão precisa? Provavelmente não.

Em 2010, o Dr. Aaron Schurger e seus colegas propuseram que as descobertas de Libet não faziam nada para provar que o livre arbítrio é uma ilusão. Em vez disso, eles mostraram que o cérebro humano, quando confrontado com uma tarefa arbitrária, às vezes simplesmente vira a balança em direção a uma decisão nebulosa em detrimento de outra, salvando-nos de refletir incessantemente entre decisões sem conseqüências reais.

Isso não indica necessariamente que os humanos não tenham controle total sobre o processo de tomada de decisão. Em vez disso, talvez demonstre que os humanos são biologicamente programados para conservar tempo e energia, não se demorando em decisões sem importância.

Embora os experimentos do Dr. Libet possam não ter feito nenhum progresso real para responder a perguntas antigas sobre o livre arbítrio, eles ajudaram a alimentar discussões importantes. As ramificações do que significaria a falta de livre arbítrio podem ser o que está mais em jogo no debate, e também é um ponto crucial da pesquisa de Maoz.

Mesmo que a existência ou não existência do livre arbítrio permaneça indeterminada, algumas das mentes mais brilhantes do mundo estão se reunindo para buscar respostas . Nesse ínterim, é seguro presumir que, embora possamos não estar processando conscientemente cada uma das decisões subalternas que tomamos, as decisões maiores com implicações maiores são aquelas que podemos controlar.

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*Fonte: pensarcontemporaneo