A capitalização dos sentimentos

Cada dia que passa, aumenta a convicção que na sociedade atual, por mais que as pessoas tenham tendência a aflorar sentimentos positivos frente às diversas situações, o sistema capitaliza toda e qualquer expressão de boa vontade.

Somos bombardeados diariamente com a promoção da catástrofe frente a uma relativização das boas ações. Você não gosta o suficiente se não é capaz de dar um bom (caro) presente; você não é um bom cidadão consumindo menos que a maioria; seu carro (considerando que precise de um) pode estar perfeito, com a mecânica em dia, funilaria boa, ou seja: em perfeitas condições. Ainda assim teimam em lhe empurrar que depois de três anos o mesmo já está ultrapassado. Até mesmo os “vintage” estão superestimados, tudo vale mais do que a grande maioria da população mundial pode pagar.

Cabe aqui um aparte do provável surgimento da inflação nos preços de praticamente todos os produtos.

Por que uma pintura custa milhões? Porque determinados serviços que poderiam ser de baixo custo são elevados a preços altíssimos? A resposta pode ser mais simples do que parece. Deve-se ao fato de a sociedade capitalista perceber que por mais que as elites acumulassem fortunas, isso ainda não os tornava tão diferentes da massa pobre. Precisavam de um diferencial. Necessitavam ter onde e como gastar as fortunas acumuladas com base na exploração dos menos favorecidos.

Milionários, bilionários, precisam estampar as revistas e os jornais com suas mais novas aquisições. Pode ser uma obra de um pintor famoso, um carro exclusivo ou uma grande propriedade.

Não estou questionando a genialidade de pintores, mas duvido muito que quando eles fizeram suas obras era com o intuito de serem vendidas a preços exorbitantes. Ainda mais em uma sociedade que tanta gente morre de fome (leia-se falta de nutrientes, tendo em vista que milhões de pessoas no mundo são obrigadas a sobreviverem com uma dieta de um ou dois alimentos somente). Também não estou questionando o trabalho de engenheiros e designers de carros de luxo. Ao menos não estou questionando suas capacidades. A questão é: por que desenvolver carros caríssimos que só servirão a uma mínima parcela da sociedade?

O resultado disso tudo é que para a elite exploradora manter seu nível vida, fazem com que os lucros de seus investimentos sejam sempre maiores, estourando a conta de quem nem consegue pagar suas contas e se alimentar bem. Aumenta-se o lucro proporcionalmente à diminuição da qualidade de vida.

Finalmente chegamos ao ponto em questão: a capitalização dos sentimentos. Não satisfeitos com a exploração, com a fome e com a baixa qualidade de vida da grande maioria das pessoas, agora atacam no subconsciente. A maioria das pessoas acha louvável quando um milionário doa 0,0001% do que tem (só doa quando é publicado nas mídias: televisão, jornal, revistas etc.), mas quando um vizinho procura desenvolver ações em prol de uma melhora na qualidade de vida de pessoas próximas, diz que não fez mais que a obrigação. Ou quem sabe questiona se o mesmo pediu “autorização” para tal benfeitoria.

Defende com unhas e dentes quem os explora, enquanto elege culpados entre os iguais. Reclama de ações assistencialistas que não comprometem a economia, ao mesmo tempo em que não sabe que instituições financeiras ficam com um terço do PIB de países latino-americanos. E ainda tem os que sabem destes fatos, mas solenemente ignoram. Apesar de todos esses elementos ainda acredito que após décadas manipulação é complicadíssimo ao menos favorecido compreender esta situação.

Deveríamos destinar um momento de reflexão em nossas vidas, para que, portanto, sejamos capazes de compreender mais elementos dentre os que compõem nossa sociedade. Mesmo que ainda seja pouco, já é um pequeno passo em prol de uma melhora. Diariamente poderíamos refletir acerca das situações que influenciam diretamente em nossas vidas e de nossos semelhantes. Talvez quando formos capazes de reconhecer nossos próprios erros, poderemos então (con)viver em uma sociedade mais justa.

*Por Leonardo Onofre

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*Fonte: obviousmag

Pesquisador proeminente prevê que a democracia vai colapsar em todo o mundo

O pesquisador Shawn Rosenberg, da Universidade da Califórnia em Irvine (EUA), fez uma declaração polêmica na última conferência anual da Sociedade Internacional de Psicólogos Políticos em Lisboa, este ano: “a democracia está devorando a si mesma”, e ele não crê que cidadãos comuns estejam aptos para evitar que ela desmorone.

Redes sociais, preconceitos e dever cívico ativo

Em sua palestra, Rosenberg apontou para a influência ascendente do populismo de extrema direita e do autoritarismo em países como Brasil, EUA, Reino Unido e por toda a Europa.

Ele enxerga tal ascendência como um sinal perturbador de que governos autoritários estejam se tornando mais atraentes para o cidadão médio do que a noção de “dever cívico ativo”.

Tal noção refere-se à uma participação ativa em um governo democrático que requer tempo de reflexão e consideração, disciplina e capacidade de analisar propaganda a partir de informações válidas.

Ironicamente, segundo Rosenberg, com a democratização da internet, as pessoas estão usando e confiando mais nas mídias sociais, o que acarreta em uma visão seletiva de postagens que confirmam seus preconceitos políticos existentes ao invés de consultar fontes de informação mais amplas e respeitáveis.

“Trabalho duro”

A democracia, ao que tudo indica, não é uma tarefa simples, mas sim um “trabalho árduo”. Esse seria o ponto que levaria as pessoas a aceitarem mais facilmente o autoritarismo, versus fazer a sua parte em uma coletividade.

Rosenberg sugere que, à medida que as “elites” da sociedade – especialistas e figuras públicas que ajudam as pessoas “comuns” a lidar com e entender as responsabilidades que advêm do governo democrático, ou “autogoverno” – são cada vez mais marginalizadas, os cidadãos se mostram mal equipados “cognitiva e emocionalmente” para administrar uma democracia que funcione bem.

Como consequência, tal sistema de governo entra em colapso e milhões de eleitores frustrados e raivosos se desesperam e apelam para os populistas de direita.

“Em democracias bem estabelecidas como os Estados Unidos, a governança democrática continuará seu declínio inexorável e acabará fracassando. Em suma, a maioria dos americanos geralmente é incapaz de entender ou valorizar a cultura, instituições, práticas ou cidadania democráticas da maneira exigida”, concluiu Rosenberg em sua palestra. “Na medida em que são obrigados a fazê-lo, eles interpretarão o que lhes é exigido de maneira distorcida e inadequada”. [Futurism, Politico]

*Por Natasha Romanzoti

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*Fonte: hypescience

Um Mundo Insano: Capitalismo e a Epidemia de Doenças Mentais

[Nota de Tradução: Apresentamos abaixo dois textos discutindo a relação, cada vez mais escancarada, entre os valores incentivados em uma sociedade capitalista e os diversos tipos de sofrimento mental que se alastram por nossas sociedades modernas, deixando para trás a ideia dessas doenças como meras questões individuais:

I. Um Mundo Insano, de Rod Tweedy, comenta sobre pesquisas recentes nas áreas de psicologia e neurobiologia que vêm trazendo à luz questões coletivas relacionadas às doenças mentais, suas conexões com aspectos fundamentais da sociedade atual e desmontando os pressupostos básicos sobre o ser humano que permeiam os valores sociais sob o capitalismo.

II. Não Prestar Pra Nada, de Mark Fisher (publicado originalmente no medium do parceiro Victor Marques), apresenta a força de seu relato pessoal de luta contra a depressão e seu lento caminho de reflexões até a compreensão desse mal como uma questão política e social, para muito além de seu sofrimento individual. ]


I. Um Mundo Insano

por Rod Tweedy, no site da Red Pepper, Agosto de 2017

As doenças mentais são agora reconhecidas como uma das maiores causas de sofrimento e miséria individual em nossas sociedades e cidades, comparáveis à pobreza e ao desemprego. Um em cada quatro adultos no Reino Unido hoje foi diagnosticado com uma doença mental e quatro milhões de pessoas tomam antidepressivos todos os anos. “Que maior acusação poderia existir contra um sistema do que uma epidemia de doença mental?”, pergunta George Monbiot.

A extensão chocante desta “epidemia” é ainda mais perturbadora pelo conhecimento de que grande parte disso poderia ser evitado. Isso se deve à correlação significativa entre as condições sociais e ambientais e a prevalência de transtornos mentais. Richard Bentall, professor de psicologia clínica na Universidade de Liverpool, e Peter Kinderman, presidente da Sociedade Britânica de Psicologia, têm escrito de forma convincente sobre essa conexão em anos recentes, atraindo uma atenção poderosa para “os determinantes sociais do nosso bem-estar psicológico”. “A evidência é irresistível, ” observa Kinderman, “não é só que existem determinantes sociais, eles são esmagadoramente importantes”.

Uma Sociedade Doente

Experiências de isolamento social, desigualdade, sentimentos de alienação e dissociação, e até mesmo os pressupostos e a ideologia básicos do materialismo e do neoliberalismo [1] em si, são hoje vistos como impulsionadores significativos – se refletindo nos títulos de uma série de artigos e palestras recentes sobre esse assunto, tais como as dos inovadores podcasts ‘Frontier Psychoanalyst’ do consultor em psicoterapia David Morgan, que incluíram discussões sobre se “O neoliberalismo é perigoso para sua saúde mental” e “O neoliberalismo está nos deixando doentes?”

O psicólogo clínico e psicoterapeuta Jay Watts observa no Guardian que:

“fatores psicológicos e sociais são pelo menos tão significativos e, para muitos, a principal causa do sofrimento. Pobreza, desigualdade relativa, estar sujeito ao racismo, ao sexismo, demissão e a uma cultura competitiva aumentam a probabilidade de sofrimento mental. Governos e empresas farmacêuticas não estão tão interessados nesses resultados, lançando financiamento em estudos que analisam genética e biomarcadores físicos em oposição às causas ambientais do sofrimento. Da mesma forma, há pouca vontade política de relacionar o aumento do sofrimento mental com desigualdades estruturais, embora a associação seja robusta e muitos profissionais pensem que esta seria a melhor maneira de enfrentar a atual epidemia de saúde mental”.

Existem, claramente, interesses e agendas muito poderosos e arraigados, que conscientemente ou inconscientemente agem para esconder ou tentar negar esse relacionamento – o que também faz com que a recente disposição entre tantos psicanalistas e terapeutas para abraçar esse contexto mais amplo seja tão excitante e emocionante.

Comentaristas freqüentemente falam sobre sociedade, contexto social, pensamento de grupo e determinantes ambientais em conexão com desordens e distúrbios mentais, mas acredito que podemos ser um pouco mais precisos sobre qual aspecto da sociedade é o principal dirigente disso, o principal responsável. E neste contexto provavelmente é hora de falarmos sobre aquela-palavra-com-c – o capitalismo.

Muitas das formas contemporâneas de doença e angústia individual que tratamos e com as quais nos envolvemos certamente parecem ser correlacionadas e amplificadas pelos processos e subprodutos do capitalismo. Na verdade, você pode dizer que o capitalismo é, em muitos aspectos, um sistema de geração de doenças mentais – e se estivermos falando sério sobre abordar não só os efeitos do sofrimento e da doença mental, mas também suas causas e origens, precisamos olhar mais de perto, com mais precisão, e de forma mais analítica a natureza do útero político e econômico a partir do qual emergem, e como a psicologia está fundamentalmente entrelaçada com cada aspecto dele.

Neurose Ubíqua

Talvez um dos exemplos mais óbvios dessa conexão íntima entre capitalismo e sofrimento mental seja o predomínio de neurose. Como observa Joel Kovel, ex-psiquiatra e professor de ciência política: “Um traço muito marcante da neurose dentro do capitalismo é a sua ubiquidade”. Em seu ensaio clássico “Terapia no capitalismo tardio” (reimpresso no livro ‘The Political Self’ [‘O Eu Político’]), Kovel se refere ao “fardo colossal de miséria neurótica na população, um peso que, de forma contínua e palpável, trai a ideologia capitalista – que sustenta que a civilização da mercadoria promove a felicidade humana“:

“Se, com toda essa racionalização, conforto, diversão e escolhas, as pessoas ainda estão desoladas, incapazes de amar, acreditar ou sentir alguma integridade em suas vidas, elas também podem começar a concluir que algo está seriamente errado com sua ordem social.”

Há também alguns trabalhos fascinantes nesse sentido feitos mais recentemente por Eli Zaretsky (‘Political Freud’, [‘Freud Político’]) e Bruce Cohen (autor da ‘Psychiatric Hegemony’ [‘Hegemonia Psiquiátrica’]), que escreveram sobre as relações entre família, sexualidade e capitalismo na geração de neuroses.

É significativo, por exemplo, que uma das características mais proeminentes do cenário psicológico que Freud encontrou na Viena do final do século XIX foram as neuroses – o que, como Kovel observa, Freud viu como estando inteiramente de acordo com o desenvolvimento “normal” em sociedades modernas – com grande parte disso, ele acrescenta, estando enraizado em nossa experiência moderna de alienação. “A neurose”, diz Kovel, “é a auto-alienação de um sujeito que foi preparado para a liberdade, mas isso entra em conflito com sua história pessoal”.

Marx foi, é claro, o grande analista da alienação, mostrando como a economia capitalista gera alienação como parte de seu próprio tecido ou estrutura – mostrando como, por exemplo, a alienação fica “perdida” ou “presa”, incorporada em produtos, mercadorias – desde exemplos óbvios (como Nikes feitos em sweatshops e sweatshops incorporados em Nikes) – até um sentido mais largo e muito mais generalizado de que todo o sistema de produção e criação é de alguma forma alienante.

Como Pavon Cuellar observa: “Marx foi o primeiro a perceber que essa alienação na verdade fica contida e encarnada nas coisas – nas “mercadorias” (‘Marxism and Psychoanalysis’ [‘marxismo e psicanálise’]). Essas mercadorias “fetichizadas”, acrescenta, parecem manter e prometer devolver, quando consumidas, a parte subjetivo-social perdida por aqueles que foram alienados enquanto as produziam: “os alienados perderam o que eles imaginam [ou esperam] encontrar naquilo que é fetichizado.”

Essa compreensão da alienação é realmente a questão central para Marx. As pessoas provavelmente o conhecem hoje por suas teorias sobre capital – como questões de exploração, lucro e controle caracterizam e ressurgem continuamente no capitalismo – mas para mim a principal preocupação de Marx, e uma que é constantemente negligenciada ou mal interpretada, é sua visão sobre a centralidade e a importância da criatividade e da produtividade humanas – o “poder produtivo colossal” do homem, como ele o chama – exatamente como de fato o era para William Blake, um pouco mais cedo no mesmo século.

Marx se refere a essa energia e capacidade de ação extraordinárias, capazes de  transformar o  mundo, como nossa “vida como espécie ativa”, nosso “ser-da-espécie” [2] – nossas “energias físicas e espirituais”. Mas sob o sistema atual, estas imensas energias criativas e capacidades transformadoras são, ele observa, imediatamente tiradas de nós e convertidas em algo estranho, objetivo, escravizador, fetichizado.

Reestruturando o desejo

A imagem que ele evoca é de mães dando à luz – outra forma de trabalho, talvez – com o bebê imediatamente sendo levado e convertido em algo estranho, algo como uma boneca – uma mercadoria. Ele considera o efeito que isso deve ter sobre o espírito da mãe. Essa, para Marx, é a fonte da alienação e do mal-estar, o tipo de deslocação profunda do espírito humano que caracteriza o capitalismo industrial. E, como mostra Pavon Cuelar, não podemos comprar nossa saída dessa alienação – produzindo mais brinquedos, mais bonecas – porque é aí que a alienação ocorre e é incorporada e gerada.

De fato, o consumismo e o materialismo são hoje amplamente reconhecidos como impulsionadores básicos de uma série de problemas de saúde mental, desde o vício até a depressão. Como observa George Monbiot, “comprar mais coisas está associado à depressão, ansiedade e relacionamentos partidos. É socialmente destrutivo e autodestrutivo”. A psicoterapeuta psicanalítica Sue Gerhardt escreveu de forma muito convincente sobre essa associação, sugerindo que nas sociedades modernas muitas vezes “confundimos o bem-estar material com o bem-estar psicológico”. Em seu livro ‘The Selfish Society’ [‘A Sociedade Egoísta’], ela mostra como o capitalismo de consumo reestrutura nossos cérebros de forma exitosa e implacável, reconstruindo nossos sistemas nervosos à sua própria imagem. Pois “deixamos passar muito do que é o capitalismo”, observa ela, “se ignoramos seu papel na reestruturação e comercialização dos próprios desejos e impulsos”.

Outro aspecto fundamental do capitalismo e seu impacto nas doenças mentais sobre o qual poderíamos falar é a desigualdade. O capitalismo é tanto um sistema gerador de desigualdade quanto um sistema de produção de doenças mentais. Como um relatório do Royal College of Psychiatrists observou: “A desigualdade é um dos principais determinantes da doença mental: quanto maior o nível de desigualdade, piores os resultados de saúde. Crianças das famílias mais pobres têm um risco três vezes maior de doença mental do que as crianças das famílias mais ricas. Adoecimento mental está consistentemente associado à privação, baixa renda, desemprego, educação pobre, menor saúde física e aumento de comportamentos de risco para a saúde”.

Alguns comentaristas até têm sugerido que o próprio capitalismo, como forma de ser ou modo de pensar sobre o mundo, pode ser visto como um sistema “psicopático” ou patológico. Há certamente algumas correspondências notáveis entre sistemas financeiros e corporativos modernos e  indivíduos com diagnóstico de psicopatia clínica, como muitos analistas têm notado.

Robert Hare, por exemplo, uma das principais autoridades mundiais em psicopatia e o criador da amplamente aceita “Lista de verificação de Hare” [‘Hare Checklist’] para testar a psicopatia, comentou com Jon Ronson: “Eu não deveria ter feito minha pesquisa apenas em prisões. Eu deveria ter passado algum tempo dentro da Bolsa de Valores também.” “Mas certamente os psicopatas do mercado de ações não podem ser tão maus quanto os psicopatas do tipo assassino em série?”, pergunta o entrevistador. “Assassinos em série arruinam famílias”, respondeu Bob, encolhendo os ombros. “Psicopatas corporativos e políticos arruinam economias. Eles arruinam sociedades.”

Instituições Patológicas

Esses traços, como Joel Bakan sugeriu brilhantemente em seu livro ‘The Corporation’ [‘A Corporação’], estão criptografados no próprio tecido das corporações modernas – são parte de seu DNA e modo de operação básicos. “O mandato legalmente definido das corporações”, ele observa, “é perseguir, de forma implacável e sem exceções, seu próprio interesse, independentemente das consequências muitas vezes nocivas que podem causar aos outros”. Por sua própria definição legal, portanto, a corporação é “uma instituição patológica”, e Bakan, de maneira muito útil, enumera os diagnósticos característicos de sua patologia padrão (falta de empatia, busca de interesse próprio, ilusão de grandeza, afetos pouco profundos, agressividade e indiferença social) para mostrar de forma confiável que paciente perturbado é uma corporação.

Por que todas estas práticas e processos sociais e econômicos contemporâneos geram tantas doenças, tantos distúrbios? Para responder a isso, penso que precisamos olhar para trás, de volta para o projeto Iluminista mais amplo e os modelos psicológicos de natureza humana [3] que dele emergiram. O capitalismo moderno surgiu dos conceitos de homem do século XVII como uma espécie de eu desconectado, descontínuo e desvinculado – um ser impulsionado pela competição e por um estreito interesse próprio “racional” – o conceito de homo economicus que dirigiu e subscreveu grande parte do todo o projeto Iluminista, incluindo seus modelos econômicos. Como Iain McGilchrist observa: “Capitalismo e consumismo, formas de conceber relações humanas como baseadas em pouco mais do que utilidade, ganância e competição, vieram a suplantar aquelas baseadas em conexão sentida e continuidade cultural”.

Nós agora sabemos quão equivocado e destrutivo é esse modelo do eu. Pesquisas neurocientíficas recentes sobre o “cérebro social“, juntamente de desenvolvimentos emocionantes nas teorias modernas do apego, psicologia do desenvolvimento e neurobiologia interpessoal, estão revisando e atualizando de forma significativa esta visão bastante excêntrica e antiquada do indivíduo isolado e “racional” – e também revelando uma compreensão muito mais rica e sofisticada do desenvolvimento e da identidade humana, através do aumento do conhecimento da intersubjetividade do “hemisfério direito” do cérebro, dos processos inconscientes, de comportamento grupal, do papel da empatia e da mentalização no desenvolvimento cerebral e do significado do contexto e da socialização em desenvolvimento emocional e cognitivo.

Como o neurocientista David Eagleman observa, o próprio cérebro humano depende de outros cérebros para sua própria existência e crescimento – o conceito de “eu”, ele observa, depende da realidade de “nós”:

“Nós somos um único e vasto superorganismo, uma rede neural incorporada em uma rede de redes neurais muito maior. Nossos cérebros estão tão fundamentalmente conectados para interagir que nem sequer é claro onde cada um de nós começa e termina. Quem você é tem tudo a ver com quem nós somos. Não há como evitar a verdade que está gravada em nossos circuitos neurais: precisamos uns dos outros.”

A dependência está, portanto, incorporada ao tecido de quem somos como seres sociais e biológicos, conectada diretamente em nosso “super-computador central”: é “como o amor se torna carne”, na frase marcante de Louis Cozolino. “Não existem cérebros sozinhos”, observa Cozolino, ecoando Winnicott, “cérebros só existem dentro de redes de outros cérebros”. Algumas pessoas têm denominado essa nova compreensão neurológica e científica sobre os padrões profundos de interdependência, cooperação mútua e o cérebro social de “neuro-marxismo”, por causa das implicações envolvidas.

O capitalismo está, aparentemente, enraizado em um modelo fundamentalmente falho, ingênuo e antiquado (do século XVII!) de quem somos – ele tenta nos fazer pensar que somos isolados, autônomos, desvinculados, competitivos, descontextualizados – em última instância, uma entidade bem dissociada e implacável. O mal que essa visão do eu fez a nós e aos nossos filhos é incalculável.

Muitas pessoas acreditam (e são encorajadas a acreditar) que esses problemas e distúrbios – psicose, esquizofrenia, ansiedade, depressão, auto-mutilação -,que esses sintomas de um “mundo doente” (para usar a fantástica descrição de James Hillman) são deles próprios, em vez de serem do mundo. “Mas e se seus problemas emocionais não forem apenas seus?”, pergunta Tom Syverson. ‘E se eles forem nossos problemas? E se o verdadeiro problema é que estamos vivendo em uma sociedade errada?” Talvez Adorno estivesse correto quando disse: “Uma vida errada não pode ser vivida corretamente”.

A raiz deste “viver erroneamente” parece ser porque vivemos em um sistema social e econômico em desacordo com nossa psicologia e nossa neurologia, com quem somos como seres sociais. Como sugiro no meu livro, precisamos perceber que nossos mundos internos e externos interagem constantemente e profundamente e se moldam mutuamente e, portanto, em vez de separar nossa compreensão das práticas econômicas e sociais da nossa compreensão da psicologia e do desenvolvimento humano, precisamos aproximá-los, alinhá-los. E para que isso aconteça, precisamos de um novo diálogo entre os mundos político e pessoal, um novo modelo integrado de saúde mental e uma nova política.

Tradução: Everton Lourenço

Rod Tweedy é um autor e editor da Karnac Books, uma das principais editoras independentes de livros sobre saúde mental e terapia. Sua coleção editada, The Political Self: Understanding the Social Context for Mental Illness [‘O Eu Político: Compreendendo o Contexto Social da Doença Mental’], foi publicada pela Karnac.


II. Não Prestar Pra Nada

por Mark Fisher, no site do Occupied Times

Sofro intermitentemente de depressão desde a adolescência. Alguns desses episódios foram altamente debilitantes — resultando em auto-mutilação, isolamento (onde passava meses confinado em meu próprio quarto, aventurando-me sair apenas para procurar emprego ou para comprar as quantidades mínimas de comida que consumia), e visitas frequentes a enfermarias psiquiátricas. Não diria que me recuperei inteiramente dessa condição, mas tenho satisfação de dizer que tanto a incidência quanto a gravidade dos episódios depressivos diminuíram muito nos últimos anos. Em parte, isso é consequência de mudanças na minha situação de vida, mas também tem a ver com uma distinta compreensão a que cheguei sobre minha depressão e suas causas. Exponho aqui minhas próprias experiências de angústia mental não porque ache que há algo especial ou único sobre elas, mas em apoio à tese de que muitas formas de depressão são melhor compreendidas — e combatidas — por meio de quadros analíticos impessoais e políticos, e não individuais e “psicológicos”.

Escrever sobre sua própria depressão é difícil. Faz parte da depressão uma voz “interior” desdenhosa que nos acusa de auto-indulgência — “você não está deprimido”, “você está apenas sentindo pena de si mesmo”, “dê um jeito nisso” —, passível de se disparada ao tornarmos pública a condição. É claro que não se trata bem de uma voz “interior” , e sim da expressão internalizada de forças sociais reais, algumas das quais têm um interesse escuso em negar qualquer conexão entre depressão e política.

No meu caso, a depressão sempre esteve conectada à convicção de que eu literalmente não prestava para nada. Passei a maior parte de minha vida, até os trinta anos, acreditando que nunca conseguiria ter uma profissão. Aos vinte e poucos, alternava entre a pós-graduação, períodos de desemprego e empregos temporários. Em qualquer um desses casos, o sentimento era de que não me encaixava — na vida acadêmica, porque sentia que não era um pesquisador sério, apenas um diletante que tinha de alguma forma fraudado meu caminho até ali; no desemprego, porque não estava realmente desempregado como aqueles que buscavam trabalho honestamente, mas “vagabundo” se aproveitando do sistema; e em empregos temporários por sentir-me incompetente e que, em todo caso, não pertencia exatamente a trabalhos de escritório ou de fábrica, não porque fosse “bom demais” para eles, mas — muito pelo contrário — em virtude de excessivamente instruído e inútil, tirando o trabalho de alguém que precisava e merecia aquilo mais do que eu. Mesmo na enfermaria psiquiátrica, sentia como se não estivesse realmente deprimido — era como se estivesse apenas simulando a condição para evitar o trabalho, ou, na lógica infernalmente paradoxal da depressão, simulando-o para esconder o fato de que eu era incapaz de trabalhar, e que não havia lugar para mim na sociedade.

Quando finalmente consegui um emprego como professor em uma faculdade de Educação Complementar, fiquei exultante por um tempo — embora esta alegria, por sua própria natureza, mostrasse que ainda eu não havia me livrado do sentimento de inutilidade que logo desencadearia novos episódios depressivos. Como professor, faltava-me a calma confiança de quem nasceu para o papel. Em algum nível não muito profundo, eu evidentemente ainda não acreditava que fosse o tipo de pessoa que poderia fazer um trabalho como aquele.
Mas de onde vinha essa crença? A escola dominante de pensamento em psiquiatria localiza as origens de tais ‘crenças’ no mau funcionamento da química cerebral, que deve ser corrigido por produtos farmacêuticos; a psicanálise e demais formas de terapia por ela influenciadas são famosas por procurar as raízes da angústia mental no contexto familiar, enquanto a Terapia Cognitiva-Comportamental está menos interessada em localizar a fonte de crenças negativas do que simplesmente substituí-las por um conjunto de alternativas positivas. Não é que esses modelos sejam inteiramente falsos, é que eles deixam escapar — e necessariamente têm que deixar escapar — a causa mais provável de tais sentimentos de inferioridade: o poder social. A forma de poder social que mais teve efeito sobre mim foi o poder de classe, embora, naturalmente, o gênero, a raça e outras formas de opressão funcionem produzindo o mesmo sentimento de inferioridade ontológica, melhor expressado justamente no pensamento que articulei acima: que você não é o tipo de pessoa capaz de desempenhar papéis destinados ao grupo dominante.

A pedido de um dos leitores do meu livro “Realismo Capitalista”, comecei a investigar o trabalho de David Smail. Smail — um terapeuta, mas que tomou a questão do poder como central para sua prática — corroborou as hipóteses sobre a depressão nas quais eu havia esbarrado por acaso. Em seu livro crucial, “As Origens da Infelicidade”, Smail descreve como as marcas de classe são projetadas para serem indeléveis. Para aqueles que foram ensinados desde o nascimento a se verem como inferiores, a aquisição de qualificações ou renda raramente será suficiente para apagar — em suas próprias mentes ou na mente dos outros — o sentido primordial de inutilidade que os marca tão cedo na vida. Alguém que sai da esfera social a qual estaria “designado” a ocupar estará sempre sujeito ao perigo de ser dominado por sentimentos de vertigem, pânico e horror: “… isolado, separado, cercado de espaço hostil, você de repente se vê sem conexões, sem estabilidade, sem nada para mantê-lo firme ou no lugar; uma irrealidade vertiginosa e nauseante se apossa de você; você se vê ameaçado por uma completa perda de identidade, um sentimento de completa fraude; você não tem o direito de estar aqui, agora, habitando este corpo, vestido desta maneira; você é um nada, e ‘nada’ é, literalmente, o que você sente que está prestes a se tornar.”

Já há algum tempo, uma das táticas mais bem-sucedidas da classe dominante tem sido a da “responsabilização”. Cada membro individual da classe subordinada é encorajado a sentir que sua pobreza, falta de oportunidades, ou desemprego é culpa sua e somente sua. Os indivíduos culparão a si mesmos antes de culparem as estruturas sociais; estruturas que, em todo caso, eles foram induzidos a acreditar que de fato não existem (são apenas desculpas, invocadas pelos fracos). O que Smail chama de “voluntarismo mágico” — a crença de que está dentro do poder de cada indivíduo se tornar o que quer que seja — é a ideologia dominante e a religião não oficial da sociedade capitalista contemporânea, empurrada goela abaixo tanto pelos “experts” da TV e gurus dos negócios quanto pelos políticos. O voluntarismo mágico é ao mesmo tempo um efeito e uma causa do nível historicamente baixo da consciência de classe. É o outro lado da depressão — cuja convicção subjacente é a de que somos todos exclusivamente responsáveis ​​pela nossa própria miséria e, portanto, a merecemos. Um duplo imperativo particularmente cruel é imposto aos desempregados de longa duração no Reino Unido: uma população que, durante toda a sua vida, foi levada a acreditar que não prestava para nada é simultaneamente bombardeada pela injunção de que pode fazer tudo o que quiser fazer.

Devemos entender a submissão fatalista da população do Reino Unido à austeridade como consequência de uma depressão deliberadamente cultivada. Esta depressão manifesta-se na aceitação de que as coisas vão piorar (para todos, exceto para uma pequena elite), que temos sorte de ter um emprego que for (então não devemos esperar que os salários acompanhem a inflação), que não podemos nos dar o luxo de bancar serviços públicos providos coletivamente. A depressão coletiva é o resultado do projeto da classe dominante de ressubordinação. Há algum tempo, temos cada vez mais nos resignado à ideia de que não somos o tipo de pessoa que pode agir. Esta não é uma falha de vontade individual, da mesma forma que uma pessoa deprimida não pode simplesmente sair da depressão em um “estalar de dedos” ao “arregaçar as mangas”. A reconstrução da consciência de classe é, de fato, uma tarefa formidável, que não será alcançada com soluções prontas e fáceis. Mas, ao contrário do que nossa depressão coletiva nos diz, é uma tarefa que pode ser realizada: inventando novas formas de envolvimento político, revitalizando instituições que se tornaram decadentes, convertendo o descontentamento privatizado em raiva politizada. Tudo isso pode acontecer, e, quando acontecer, quem sabe o que será possível?

Tradução: Victor Marques / Revisão: Jorge Adeodato

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*Fonte: ominhocario

Como a visão utópica do Vale do Silício pode criar uma forma brutal de capitalismo

Os deuses da tecnologia estão vendendo a todos um futuro brilhante.

“Somos uma comunidade global”, dizem. “Com a tecnologia em nossos bolsos, podemos recuperar nossas cidades”, prometem. “Não queremos ser parte do problema. Somos e seguiremos sendo parte da solução”, garantem.

Mas a promessa do Vale do Silício de construir um mundo melhor se baseia, de certa forma, em destruir o que temos hoje em dia.

Essa “quebra” ou “destruição” é o que eles chamam de “rompimento”. Os responsáveis por causá-lo são, assim, os “rompedores”, conforme denominação usada por eles, mas que não está no dicionário.

Esperança

De perto, o Vale do Silício parece muito normal. Tem até um ar meio entendiante. Mas o que faz desse lugar um agente tão modificador na vida de todo mundo?

Provavelmente, um bom lugar para buscar essa resposta seja a Mansão Arco-Íris, uma “comunidade de pessoas que trabalham para otimizar a galáxia”.

A mansão é o local de um monte de nômades do mundo todo que chegaram ao Vale do Silício para realizar seus sonhos. Eles dividem o valor do aluguel e, assim, conseguem bancar a moradia em uma casa de luxo.

Por toda a casa, há gente trabalhando para resolver algum dos problemas mais urgentes do planeta.

“Estou tentando fazer a conversão do CO2 com uso da energia ultravioleta do sol. Assim seria possível reverter as mudanças climáticas…quimicamente, seria totalmente possível”, explica um dos moradores da região.

“Nossos hambúrgues feito de plantas utilizam uma pequena porção da terra, menos água e menos emissões de gases de efeito estufa”, conta uma mulher entusiasmada.

“Somos exploradores, estamos descobrindo novos mundos”, garante outro.

Bill Hunt, por sua vez, já criou cinco empresas, que vendeu por US$ 500 milhões. O que ele acha de quem escolhe morar na Mansão Arco-Íris?
Image caption Na garagem da Rainbow Mansion está o laboratório. As garagens têm um papel crucial na mitologia do Vale do Silício: Hewlett-Packard, Apple e Google começaram em garagens

“Há uma mentalidade aqui muito focada na ruptura.”

Essa é a ideia mais forte na ideologia do Vale do Silício: ruptura.

“Trata-se do pensamento: como se desfazer desse sistema (ou indústria ou arquitetura) e encontrar uma nova forma (e melhor) de fazê-lo?”

A Mansão do Arco-Íris reflete o sonho que paira sobre o Vale do Silício: a ideia de que, com um pouco de tecnologia e ideias, é possível mudar o mundo e melhorar radicalmente a vida de milhões de pessoas.

E os deuses tecnológicos professam essa ideologia com a mesma intensidade: perturbar significa mudar e tudo isso soa a “esperança”.

Mas por trás dos ideais que levam à ruptura incentivada pelo Vale do Silício, há uma realidade empresarial mais tradicional.

Dinheiro

As startups chegam ao Vale do Silício atraídas por outra grande indústria: a do capital de risco.

Os investidores apostam milhões – e até bilhões – de dólares nessas empresas recém-criadas com a esperança de encontrar outro Facebook ou Google.

Mas o investimento tem uma consequência.

Os fundadores das startups mais valiosas até agora – Airbnb e Uber – atraíram bilhões de dólares de capital de risco, embora o Airbnb só tenha começado a dar lucro agora e a Uber esteja constantemente acumulando prejuízos enormes.

Mais do que benefícios, os investidores de capital de risco querem ver um potencial de lucro rápido, e isso cria uma grande pressão para essas empresas novatas.
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Image caption Ideais do Vale do Silício: dinheiro ou propósito social?

Elas têm que demonstrar sempre que estão crescendo. A mantra das startups é sempre aumentar o número de clientes.

Mas, quais são as implicações disso na missão do Vale do Silício para construir um mundo melhor?

O caso da Uber

A Uber é a empresa de tecnologia que conseguiu acumular mais investimento até agora: mais de US$ 16 bilhões.

A empresa oferece um novo tipo de transporte, como se fosse uma “carona”. Foi criada há apenas oito anos e já opera em mais de 450 cidades em 76 países diferentes.

Mas qual é, na verdade, o tipo de mundo que a Uber está construindo?

“Nossa proposta é deixar de lado a ideia de que todo mundo precisa dirigir seu próprio carro para onde quiser ir”, explica Andrew Salzberg, diretor de transporte da Uber.

“Em países como os Estados Unidos, a grande maioria dos percursos são feitos por pessoas que conduzem seu próprio carro, e isso tem muitas consequências. Não somente em termos do número de veículos que acabam sobrecarregando as cidades, mas também pelo impacto ambiental e pela quantidade de mortos no trânsito.”

Uma pura expressão da utopia do Vale do Silício.

A Uber seria uma mera empresa que busca o lucro ou seria uma empresa que privilegiaria sua missão social?

“Obviamente, estamos aqui para ganhar dinheiro, como qualquer negócio privado. Mas na medida em que você começa a entrar em diferentes lugares e muda a maneira que as pessoas usam os carros, isso faz o segundo aspecto se tornar possível.”

Em todo o mundo, os taxistas tradicionais protestaram contra a Uber por subvalorizar seus preços. É uma ruptura clássica do Vale do Silício: destruir indústrias tradicionais proporcionando uma alternativa popular e barata.

Mas o custo social dessa ruptura vai muito além disso.

A Índia é um país com mais de um bilhão de pessoas, e o principal objetivo da Uber para sua expansão global é chegar até lá.

Na cidade indiana de Hyderabad é possível ver as consequências humanas da ruptura feita em San Francisco. A Uber chegou prometendo um novo tipo de trabalho mais flexível, que empodera os motoristas.

Sem lucro e sob uma enorme pressão de crescer para fazer frente a um forte concorrente local, a Uber publicou anúncios publicitários na imprensa e outdoors prometendo aos motoristas um salário de US$ 1,4 mil ao mês, cerca de quatro vezes mais do que o que eles normalmente ganhavam.

Como na Índia muita gente não tem carro, especialmente os possíveis motoristas da Uber, a empresa ofereceu ajuda para eles conseguirem empréstimos para comprar carros novos.

Assim, o número de motoristas foi aumentando, mas o número de clientes não, então os lucros caíram.

E, como já não eram necessários tantos motoristas, a empresa cortou os incentivos. Para algumas famílias, a vida mudou completamente depois que a promessa da Uber virou pesadelo.

Mohammed Zaheer trabalhou como taxista. Quando a Uber chegou à Índia, ele ficou entusiasmado com a ideia. Logo pegou um empréstimo de US$ 11 mil para comprar um carro, mas pouco tempo depois, seu lucro foi apenas caindo, como aconteceu com muitos outros motoristas da empresa.

Em 2015, Mohammed participou de uma greve de motoristas por conta da queda nos lucros. Pouco tempo depois, acabou se suicidando. Seu corpo foi levado à sede da Uber no país. A empresa nem sequer respondeu. Outros motoristas da companhia já se suicidaram em Hyderabad.

Um ex-executivo da Uber – que falou com a BBC na condição de anonimato – afirmou que “os motoristas foram enganados”, porque não explicaram a eles que os salários e incentivos oferecidos inicialmente poderiam mudar.

“Isso é o que realmente revoltou muita gente.”

O mantra do Vale do Silício é que a ruptura “é sempre boa”. Que com os smartphones e a tecnologia digital, é possível criar serviços mais eficientes, mais cômodos e mais rápidos. E que todo mundo ganha com isso.

Mas por trás desse “aplicativo maravilhoso” ou dessa plataforma impecável, está se desenvolvendo uma forma brutal do capitalismo que está deixando de fora alguns dos setores mais pobres da sociedade.

Em uma declaração, a Uber disse que apoiou a investigação das autoridades após o suicídio do motorista e assegurou que eles são a essência da empresa – e que está comprometida a melhorar a experiência deles. Ainda afirmou que está atuando na Índia de acordo com as “lições já aprendidas”.

De volta ao Vale do Silício

Os titãs da tecnologia conseguiram nos convencer de que não são como outras empresas, como as petroleiras, os bancos ou as grandes farmacêuticas, a quem só importa o benefício econômico. As do Vale do Silício, ao contrário, seriam movidas pelo propósito social de melhorar o mundo.

Os fundadores do Airbnb, por exemplo, dizem que estão conectando o mundo, não simplesmente permitindo que as pessoas alugem suas casas para turistas.

O Airbnb é um gigante mundial, avaliado em US$ 31 milhões, mas não se vê como um grande negócio.

Na sede mundial da empresa, em San Francisco, Chris Lehane, que era conhecido como “maestro do desastre” por sua forma de “administrar escândalos” – como o do ex-presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, com a estagiária Monica Lewinsky – explicou à BBC sua visão.

“A gente gosta de pensar que somos um tipo diferente de empresa. A ideia inicial dos fundadores foi que era possível fazer dinheiro com aquilo que costumava ser seu maior gasto: sua casa. E isso acontece hoje em dia.”

“Mais da metade das pessoas que estão na plataforma são pessoas de renda baixa e moderada que a utilizam para cobrir gastos.”

“A visão dos nossos fundadores é poder usar a plataforma para conectar as pessoas.”

“No mundo atual, quando tem gente falando em construir muros, fechar portas e colocar barreiras, este é um lugar que está focado em usar a tecnologia para criar uma sociedade aberta”, disse.

O Airbnb afirma que os únicos perdedores em sua proposta de ruptura é a tradicional indústria hoteleira. Mas isso não é o que se sente em Barcelona.

Os moradores de lá reclamam que os aluguéis na cidade estão subindo para todos, já que os proprietários só pensam nos turistas.

O governo local está tentando controlar o crescimento do sistema de Airbnb na cidade exigindo uma licença para os proprietários que desejam colocar suas casas para um aluguel de curto prazo.

Mas não é só Barcelona que tem recebido reclamações desse tipo. Em outras cidades do mundo, os moradores também expressaram seu medo pelo aumento do custo de vida que o Airbnb traz, prejudicando os próprios moradores locais.

O argumento clássico das empresas que provocam essas ruputas é que os órgãos reguladores, os governos, os políticos eleitos, têm que se atualizar e mudar suas políticas levando em consideração a nova realidade.

Por causa disso, o Vale do Silício parece não ter uma opinião muito boa sobre os governos em geral. Isso fica muito evidente quando o assunto é pagar impostos.

Números

Para se ter uma ideia disso, é preciso analisar como as empresas do Vale do Silício se comportam com relação aos impostos em seu lugar de origem.

Google, Apple, Facebook, essas empresas pagam impostos locais sobre a propriedade a uma taxa de 1% do valor de todos os seus edifícios e equipes.

Larry Stone é o assessor do Condado de Santa Clara e seu trabalho é calcular o o valor de suas propriedades.

Ele diz que as gigantes tecnológicas tendem a não estar de acordo com o que devem pagar de contribuição. Uma das maiores batalhas por impostos nos Estados Unidos, aliás, está acontecendo com a Apple.

Quando ficar pronta, sua nova sede será a mais imponente do Vale do Silício. Com um círculo de 1,6 km de diâmetro, o Apple Park será um coliseu moderno. “Nós dissemos que o valor da sede é US$ 6,8 bilhões. A Apple diz que vale US$ 57 milhões”, explica Stone.

“Eles estão contestando 99% do valor.”

Se a apelação da Apple tiver êxito em sua totalidade, os US$ 68 milhões de impostos que as autoridades pensam que a empresa deve pagar se tornarão um pouco mais que US$ 500 mil.

E a Apple não é o único gigante da tecnologia que faz apelações judiciais sobre impostos por propriedades locais. Que repercussão isso pode ter na sociedade? Afinal é com impostos locais que se pagam as escolas e outros serviços.

“Nos anos 1950, 1960 e 1970, Detroit despertou inveja no mundo todo. Hoje em dia, Detroit faliu. Podemos seguir o mesmo caminho se não resolvermos nossa educação pública e nosso compromisso com a comunidade como pessoas, como cidadãos e como empresas.”

Em todo o mundo, os gigantes da tecnologia foram acusados de reduzir agressivamente suas contas fiscais.

Mas a forma como tratam localmente esses temas diz algo sobre a cultura dessas empresas: o enfoque geral sempre é tratar de minimizar o imposto que pagam ou tentar passar por cima dos governos.

Risco da onda de ruptura

A tal “ruptura” proposta pelo mercado da tecnologia no Vale do Silício não é nada novo.

A energia a vapor, a eletricidade, e as linhas de produção destruíram indústrias que existiam antes e obrigaram os governos a mudar.

O mundo sobreviveu, a vida melhorou.

No entanto, essa onda de ruptura não é como a última, porque tem o potencial de mudar a forma como funciona o capitalismo – e isso pode transformar nossas vidas completamente.

A política, ao final, tem que ser capaz de assumir o controle desta tecnologia, garantir que seja feita em benefício da sociedade, que não satisfaça unicamente os interesses de poucas pessoas incrivelmente ricas da costa Oeste dos Estados Unidos.

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*Fonte/texto: bbc/portugues

Como a internet das coisas vai atropelar o capitalismo

A web deve dar origem já nas próximas décadas a um novo sistema econômico com base em trocas e colaboração.

Nos últimos 300 anos, o mundo passou por duas revoluções industriais: a primeira liderada pela Inglaterra no fim do século XVIII, e a segunda, pelos Estados Unidos, algumas décadas depois. O pioneirismo transformou esses paí­ses em potências mundiais.

De acordo com o pensamento do economista norte-americano Jeremy Rifkin, foi dada a largada para uma nova corrida industrial entre as nações, e desta vez a Alemanha saiu na frente. Guru de executivos e chefes de estado, como a alemã Angela Merkel, Rifkin explica em seu último livro, The Zero Marginal Cost Society: The Internet of Things, the Collaborative Commons, and the Eclipse of Capitalism (A sociedade do custo marginal zero: a internet das coisas, os bens comuns colaborativos e o eclipse do capitalismo), como a internet das coisas está dando origem à economia do compartilhamento, que deverá superar o capitalismo até a metade do século.

P: O senhor diz que o capitalismo vai ser colocado em segundo plano pela economia colaborativa. Muita gente se assusta com a ideia de um mundo onde o capitalismo não é o único caminho?
Sim, mas talvez o mesmo tanto de pessoas ache essa possibilidade intrigante e mesmo esperançosa. O capitalismo está dando à luz uma espécie de filho, que é a economia do compartilhamento e dos bens comuns colaborativos. Ela é o primeiro sistema econômico a emergir do capitalismo desde o socialismo no século XX. Nós viveremos em um sistema econômico híbrido, composto pela economia de troca no mercado capitalista, e pela economia do compartilhamento.

P: O senhor considera o capitalismo obsoleto para as necessidades atuais?
De tempos em tempos, novas revoluções tecnológicas emergem para gerenciar mais eficientemente a atividade econômica. Creio que agora estejamos em um longo e perigoso “fim de jogo”, um pôr do sol da segunda revolução industrial. Em 1905, 3% da energia era utilizada na cadeia de produção e 97% era perdida. Em 1980 tivemos um pico de 18% de eficiência, e parou nisso. Estamos empacados. O que está acontecendo agora é que estamos no curso de uma terceira revolução industrial. A internet das coisas vai conectar campos de agricultura, linhas de produção de fábricas, lojas de varejo e armazéns, veículos autônomos e casas inteligentes. É uma transição épica, que pode conectar a raça humana inteira em tempo real e nos mover para uma produtividade extrema, com custo marginal baixo ou mesmo zero em todos os setores da economia.

P: O senhor acha que os Estados Unidos continuarão sendo a maior potência nesse novo sistema?
Os líderes agora são a Alemanha e a China. Os chineses entenderam que os britânicos lideraram a primeira revolução, e os norte-americanos, a segunda, e que essa era a chance deles.

P: O senhor sugere que essa transição de paradigma do capitalismo para os bens comuns colaborativos vai ocorrer de maneira suave, e não como as grandes revoluções políticas que já acompanhamos. Não existem pessoas e instituições interessadas em estancar esse processo de mudança?
Há interesses poderosos, governos e indústrias querem ter voz, mas o que realmente me preocupa são as companhias de internet. Eu adoro o Google, uso todos os dias, mas ele já assume a forma de um monopólio global. O mesmo acontece com o Facebook. A pergunta é: o que fazer? No século XX, mantivemos no mercado privado companhias de eletricidade, telefônicas, gasodutos, coisas de que todos precisavam – mas regulamos suas atividades por meio do governo. Seria ingênuo acreditar que essas empresas privadas tão grandes e importantes, que estabeleceram bens de que gostamos e que queremos, não serão reguladas por alguma forma de autoridade global.

P: No livro, o senhor concebe essa nova sociedade como uma “civilização empática global”. Por quê?
O que está acontecendo é uma mudança fundamental na forma como as gerações mais novas pensam. Não se trata apenas de os jovens estarem produzindo e compartilhando seu próprio entretenimento, notícias e informações, eles também estão começando a compartilhar todo o resto – carros, roupas, apartamentos. A internet permite que eles eliminem os agentes intermediários e criem uma cultura do compartilhamento. As gerações mais novas não querem ter um carro, isso é coisa do vovô. Os millenials das gerações mais novas querem acesso, e não posse. Eles estão realmente começando a ver a si próprios como parte de uma grande família humana, e as outras criaturas em certa medida também como parte dessa mesma família.

 
DICIONÁRIO RIFKIN
Entenda alguns dos conceitos mais usados pelo economista

TERCEIRA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL:
Processo desencadea­do pela internet das coisas, liderado pela Alemanha e pela China. Deve promover níveis de produtividade e eficiência energética sem precedentes, reduzindo os custos de bens e serviços e consolidando a economia do compartilhamento e dos bens comuns colaborativos.

CUSTO MARGINAL:
Conceito econômico que se refere à variação no custo total de produção quando se aumenta a quantidade produzida de bens. O custo marginal zero representa uma situa­ção ideal de produtividade, na qual se pode fabricar mais objetos sem pagar mais por isso, reduzindo drasticamente o valor final do produto, que pode até ser compartilhado gratuitamente.

CIVILIZAÇÃO EMPÁTICA:
T
ermo criado para se referir à nova civilização que Rifkin acredita que deverá surgir a partir do processo de transição pelo qual estamos passando. Trata-se de uma mentalidade não mais adaptada ao capitalismo, mas à economia do compartilhamento. É uma visão que concebe a humanidade como uma única família e o planeta ou a biosfera como a comunidade que se compartilha.

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*Fonte: revistagalileu

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